quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Raul Solnado foi à Ponte

O actor publicou um texto a gozar com a Ponte 25 de Abril, sete meses depois da inauguração. A PIDE arquivou o recorte que saiu na Semana Portuguesa nº 180, de 4 a 10 de Março de 1967.

Texto de Raul Solnado “Outro dia fui atravessar a ponte. Era para não ir porque eu não me posso estar a meter em cavalarias altas, mas tanto me disseram tanto me falaram tanto me gabaram a ponte que eu assim que recebi a gratificação de Natal, fui. E não se pode dizer que eu ficasse desapontado, mas afinal aquilo não é o que eu pensava. Em primeiro lugar eu ouvi dizer que eles estavam todos muito contentes porque só levaram três anos a fazer a ponte, e que portanto tinham feito um recorde. Recorde uma bolota! Levam 3 anos a pôr uns ferrinhos para cima, dizem que é recorde e ficam todos vaidosos. E ainda por cima é mentira, porque inauguraram a ponte sem estar a obra acabada. Deixaram-lhe uns buraquinhos no chão, que ainda não taparam e uns buracos de lado que se calhar nunca mais tapam e nem tecto puseram. Quer dizer: além da corrente do rio, aquilo está cheio de corrente de ar. Enfim, isso é lá com eles, eu não sou engenheiro e muito menos americano, portanto eles que se entendam lá uns com os outros porque eu não tenho obrigação de lhes estar a lembrar coisas que a gente está mesmo a ver. Bem, o que interessa é que eu fui então por uma estrada toda aos caracóis que se chama estrada dos sucessos da ponte e andei ali, mais de meia hora às voltas, que até senti tonturas: isto foi para começar! Depois lá consegui chegar à entrada da ponte onde há uma casinha que tem lá dentro um senhor fardado que está ali a pedir dinheiro para as obras da ponte. O que eu achei esquisito é que aquilo tem um letreiro que diz “portagem”, o que eu acho que está errado porque “portagem” devia ser na ponte do Porto. Ali devia ser “almagem”, porque a casinha fica em Almada, ou “pagagem” porque é onde se paga, ou então “garagem” já que é para automóveis! Bem então lá dei os 20$00 e fiquei na espera, porque pensei que por aquele dinheiro eles forneciam os automóveis e, claro, embora mesmo assim não fosse barato, a gente sempre ficava com o carro e dava ela por ela. Mas não. A gente paga aquele dinheiro todo e eles não dão nada. Nem há música nem um filme, nem ao menos uma cerveja. Nada! Nem recibo! Por aquela exorbitância, ao menos podiam ter feito uma escada de caracol para as pessoas virem cá abaixo chapinhar na água! E o pior é que mal se apanham com o dinheiro na mão e passamos a casinha para entrar na ponte fica logo tudo proibido. É proibido buzinar, é proibido cuspir, não se podem atirar fora as pontas de cigarros e temos que engolir as “beatas”, é proibido guinar para a esquerda, mas para a direita também é, não se pode andar devagar mas depressa também não, e nem sequer se pode olhar para os barquinhos! Parece um convento! Calculem que nem se pode parar no caso da gente precisar fazer qualquer coisa… enfim… resolver qualquer aperto! E se fazermos alguma coisa que os policiais da ponte não achem graça, eles multam e ainda pontificam! Eu acho que quando só havia barcos era muito melhor. A gente pagava muito mais barato e punha as “beatas” onde a gente queria, cuspia-se que até dava gosto e ao menos sempre era um passeio de barco que se dava! E ainda por cima com uma vantagem muito grande! O tempo que se esperava na bicha para entrar no barco era um tempo que se podia aproveitar para ir passando férias. Pois! Mas eu é que já descobri como é que hei-de ir a Cacilhas de borla. Vou pela ponte de Santarém, que já não se paga, gasto os vinte escudos em melões de Almeirim, venho por ali abaixo e posso chegar a Cacilhas a muito boas horas de apanhar o barco para Lisboa. Não estou para que me aconteça o que aconteceu a um rapaz que eu conheço. Passou a ponte para lá e agora, coitadinho, está há mais de um mês a lavar pratos num restaurante a ver se consegue dinheiro para voltar para Lisboa. Livra! A mim é que já não me apanham!

(in Século Ilustrado) Este documento foi encontrado  nas duas pastas da PIDE com o nome do actor, que a SÁBADO consultou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.
Surripiado aqui

10 comentários:

Unknown disse...

É sempre agradável ler os textos de Raul Solnado. A delicadeza da sua sátira é encantadora e a sua irreverência torna-se no riso aberto de todos nós.

Agradeço esta partilha e renovo os meus votos de um Bom Ano 2012 para todos nós.

Já que temos de pagar a crise...que seja a rir...

Pedro Coimbra disse...

Rodrigo,
Lembra-se de um dos personagens que ele criou, o alcoólico?
Que, quando lhe pediam para ir à ponte ele perguntava - "Ponte? Ponte o quê?"
E o outro respondia-lhe - "A Ponte Salazar".
Resposta do Solnado - "Aponte o quê? Aponte você que eu sou bêbado mas não sou maluco!!"
Lembrei-me desse momento quando vi a sua publicação.
Sou fã do Solnado desde menino.
Aquele abraço

Laços e Rendas de Nós disse...

Rodrigo

Fartei-me de rir. Solnado, para mim, é rir, é malícia política, é crítica.

Lembro-me quando foi lançado o vinil da ida à guerra, uns amigos de S. Tomé vieram à Metrópole e compraram o que havia de mais recente.

Passávamos serões a ouvir e a rir, sentados na varanda, a miudagem sem perceber metade das coisas mas, pelos comentários dos adultos, a vermos que havia ali coisas que eram significativas.

Adoro Solnado. Claro que não conhecia este texto. Obrigada pela partilha.

Beijo

Rogério G.V. Pereira disse...

Já lá coloquei no facebook a passagem que sublinhei:

"O que eu achei esquisito é que aquilo tem um letreiro que diz “portagem”, o que eu acho que está errado porque “portagem” devia ser na ponte do Porto. Ali devia ser “almagem”, porque a casinha fica em Almada, ou “pagagem” porque é onde se paga, ou então “garagem” já que é para automóveis! Bem então lá dei os 20$00 e fiquei na espera..." Chamei-lhe pérola e o parecer que a PIDE não gostava de jóias destas...

Abraço

alma de pássaro disse...

Inigualável o Raul Solnado...
É sempre um prazer rever a sua obra.
Obrigado pela partilha,beijinho

Isa GT disse...

Delicioso... mas tenham cuidado... os que não moram no sítio onde nasceram porque, um dia, ainda os apanham desprevenidos e, têm a triste ideia, de ir "à terra" fazer uma visitinha à família e ainda vão ficar, como diz o Solnado, a lavar pratos para pagar tantas portagens e scuts... se quiserem voltar para casa ;)

Bjos

Anónimo disse...

Quantas vezes imagino a felicidade dos censores do Estado Novo, se hoje em dia estivessem no activo, Rodrigo!
Um divertido e inocentíssimo texto de Raul Solnado cortado, que é um bom exemlo para os mais jovens perceberem que era a Censura do Estado Novo.
Obrigado pela partilha
Abraço e Feliz 2011

Graça Sampaio disse...

É mesmo à Raul Solnado! O saudoso Raul Solnado...

Beijinhos e Bom Ano (sem muitas proibições...)

Pedro Coimbra disse...

BOM ANO, Rodrigo!!!

Ferreira, M.S. disse...

Um excelente texto do mestre Solnado!
Obrigado pela partilha!
Um abraço