Tenho alguma dificuldade em participar em homenagens póstumas a homens e mulheres que em vida não lhe foi reconhecido o merecido mérito. Mesmo que alguém vá pregando no deserto para que isso se faça.
Para além de outros nos últimos tempos deixou-nos um Marinhense a quem, não foi em vida feito o devido reconhecimento
Este post pretende tratar duma iniciativa que tem o objectivo, como o título indica “Relembrar Joaquim Carreira". A data escolhida coincide com a sua última prisão em 28 de Outubro de 1973 data da última farsa eleitoral do regime fascista.
Na Marinha Grande, depois do MDP-CDE ter apresentado a desistência, centenas de Democratas (cujo numero foi aumentando durante o dia até aos milhares), juntaram-se à boca das urnas, protestando contra a referida farsa eleitoral.
Neste grupo estava gente de todas as idades entre eles, alguns adolescentes. A polícia já tinha ensaiado algumas tentativas para dispersar os manifestantes. Foi precisamente numa dessas investidas que ao opor-se às agressões que estavam a ser feitas a jovens adolescentes, que Joaquim Carreira, dando mais uma vez o corpo às balas se atravessou no caminho da polícia, sendo imediatamente detido. Foi o último preso político a ser julgado no tristemente célebre Tribunal Plenário.
Seriam muitos os testemunhos que poderíamos recolher sobre uma vida inteira ao serviço dos trabalhadores e da causa da liberdade e da Democracia, ao serviço daquele que foi sempre o seu partido, o PCP apesar da sua inconcebível expulsão, por delito de opinião.
Pedimos a um dos seus Camaradas de prisão e de clandestinidade que escrevesse um pequeno testemunho sobre este "verdadeiro herói Nacional" (como lhe chamou Henrique Neto) e "um jovem e heróico vidreiro da Marinha Grande",como lhe chamou José Dias Coelho no seu livro "Histórias da Resistência". Como lembrou Osvaldo Castro,
aqui.
Joaquim Carreira
A pura dedicação à luta dos trabalhadores
Testemunho de Carlos Brito
Conheci o Joaquim Carreira na cadeia da PIDE de Caxias, na minha terceira prisão, em 1959.
Nessa altura, as cadeias da PIDE estavam superlotadas pelas centenas de prisões efectuadas no rescaldo da campanha de Humberto Delgado e em consequência da repressão das greves políticas de protesto contra a burla eleitoral que roubou a vitória ao General.
Na própria sala onde nos juntámos, a PIDE tinha concentrado mais de uma dezena de funcionários do PCP, contra tudo o que era habitual por causa do receio das fugas.
Lembro-me que apesar de ali se encontrarem destacados dirigentes comunistas como José Magro e Rogério de Carvalho, a figura do jovem revolucionário louro, chamado Joaquim Carreira, dava nas vistas logo no primeiro contacto.
Percebi que isso acontecia, porque não era homem para ficar calado, mesmo quando os mais velhos sentenciavam, e sobretudo pela veemência com que se pronunciava.
Apesar de haver entre nós uma certa diferença de idade, ele mais velho, éramos os dois dos mais novos da sala, embora já com bastante experiência e responsabilidades partidárias. Criámos com um outro camarada, também dos mais novos, um grupo de animação cultural e humorística que semanalmente arrancava com um serão em que depois todos participavam. Foi assim que além de camaradas nos tornámos amigos e partilhamos confidências. Nas falas dele, o filho Alberto vinha sempre à baila e um dia também veio o nome da mãe, Fernanda Tomaz, sua companheira e por quem estava visivelmente apaixonado. Foi então a minha vez de lhe dizer que a Fernanda tinha um imenso prestígio e deixou grandes saudades entre os estudantes de esquerda de Lisboa, quando passou à clandestinidade, muito nova, no início dos anos cinquenta.
O Joaquim Carreira também passou à clandestinidade muito novo, pouco mais do que adolescente, e fez um percurso especialmente duro nos quadros do PCP, passando pelas tipografias, incluindo como tipógrafo, e também na qualidade de funcionário de organização em zonas bastante tocadas pela PIDE. Mas ele falava com uma certa vaidade desta dureza que fazia parte daquilo que entendia ser a condição de revolucionário. Tinha esta condição entranhada no espírito, desde criança dizia, como verdadeiro filho do proletariado da Marinha Grande, pois assim se considerava e assim falava das lutas dos operários do vidro, comovendo-se até às lágrimas.
Quando lhe nasceu o filho pôs-lhe, é claro, o nome de Alberto, que era o pseudónimo partidário de José Gregório, operário marinhense dos mais ilustres, participante do 18 de Janeiro, e que foi um dos principais dirigentes do PCP desde da reorganização do início dos anos quarenta até quase aos meados dos anos cinquenta, altura em que adoeceu gravemente.
Joaquim Carreira foi preso em 1958, num momento em que a PIDE raivosa com o crescimento da oposição ao regime estava a aplicar a tortura do sono até ao limite da sobrevivência. Carreira foi submetido a este suplício extremo durante vários dias e noites e a PIDE tudo fez para o vergar. Não conhecia a têmpera do revolucionário que tinha pela frente, que tudo enfrentou com a maior coragem, recusando-se a fazer qualquer declaração.
Em princípios de 1960, fizemos parte, ambos, do grupo de funcionários do Partido que a PIDE enviou para Peniche, mesmo sem estarmos julgados, o que era anormal, para ocuparmos as celas deixadas vazias pela fuga de Álvaro Cunhal e dos outros dirigentes do PCP..
Fomos submetidos durante anos a um regime de perseguição vingativa que se traduzia na frase que nos foi transmitida pelo chefe dos Guardas logo à chegada: «é proibido tudo aquilo que não for expressamente autorizado.»
Era proibida qualquer espécie de solidariedade entre os presos, sob o pretexto da liquidação da «comuna»; era proibida qualquer contacto com as camas desde os apitos da alvorada até aos apitos do recolher, a pretexto de os lençóis terem sido usados pelos fugitivos para fazer cordas; em regime celular de isolamento, éramos sujeitos a «convívios» em que era proibido falar; era proibida e entrada de livros que não fossem manuais escolares do ensino oficial, salvo autorização especial do director.
A propósito destas autorizações, o Joaquim Carreira foi o protagonista de um episódio que refiro num dos meus livros. Fez um requerimento ao director para poder receber um livro da história da Grécia, que tratava do período do Helenismo. O director não autorizou. O Carreira reclamou e pediu-lhe uma entrevista. O director acedeu para lhe dar uma lição, dizendo:
«Eu aprecio que os senhores se instruam para a futura reinserção na sociedade quando terminarem o vosso castigo. Mas não percebo que interesse tem para um operário um livro sobre o helenismo. Lá diz o evangelho: “não suba o sapateiro acima do chinelo.»
O Carreira respondeu-lhe: «Eu não sei se senhor director lê jornais, mas se lê há-de reparar que no tempo das revoluções socialistas, que é o nosso, os operários tem um papel no mundo que nada tem a ver com o sapateiro do evangelho.» O director remoeu e passados uns dias autorizou o livro, talvez
para mostrar que lia jornais.
Mas nem sempre as coisas acabavam assim. De espírito naturalmente rebelde e independente, chocava-se permanentemente com a teia de proibições que nos cercava e lá vinham os gritos e as admoestações dos guardas e os castigos do chefe que lhe infernizavam a vida. Nunca, porém, virava a cara aos perigos.
Como se sabe, em qualquer cadeia e fosse qual fosse o regime, os comunistas organizavam-se clandestinamente. Em Peniche funcionava uma organização prisional, com a sua direcção e organismos em todos os sectores prisionais, que os carcereiros queriam manter separados em compartimentos estanques. Uma das principais tarefas era a manutenção das ligações desta rede organizada, o que implicava imaginação e riscos. Pois o destemido Carreira queria sempre chamar a si esta tarefa.
Enquanto estivemos juntos em Peniche constituímos os dois, com um terceiro camarada que foi alterando, o organismo partidário do nosso sector. Este além de dirigir a luta prisional no sector, em ligação com a direcção, tinha que pronunciar-se sobre quadros, apreciar
informações sobre o porte na polícia, intervir na solução de problemas humanos dos camaradas sob o nosso controlo. Conheci por isso muito bem as concepções do Carreira. O que mais me surpreendia é que ele conciliava aquela maneira veemente e frontal de intervir, às vezes até um pouco rude, com uma enorme compreensão pelas dificuldades alheias, ausência de sectarismo e grande independência de opinião, o que obrigava a discussões demoradas e a que as decisões nunca fossem burocráticas.
Ele saiu da cadeia uns largos meses, antes de eu próprio ser posto em liberdade. Quando sai, mal contactei os camaradas em Lisboa, foi-me transmitido o convite para um piquenique por ele organizado na Marinha Grande. Desrespeitando as normas da liberdade condicional em que me encontrava, não hesitei e lá fui. Realizou-se um dia de excelente e encorajadora confraternização de ex-presos políticos e outros camaradas. O melhor de tudo foi ver que o Carreira reorganizava a sua vida na companhia da Rosinda.
Passado pouco tempo depois de libertado, eu passei de novo à clandestinidade e só nos voltámos a ver após o 25 de Abril. Na última vez que estive na Marinha Grande referiu-me com amargura as suas crescentes dificuldades com o Partido. Não me admirei, eu próprio também as tinha, mas pensei que, no caso do Carreira, o Partido levaria em conta a sua vida, que foi de pura dedicação à luta dos trabalhadores.
Como conclusão deste testemunho, é preciso, no entanto, dizer mais:
Revolucionário desde menino, como ele próprio se considerava, Joaquim Carreira foi um comunista a vários títulos exemplar.
Aliava a grande firmeza de convicções à larga abertura para as opiniões alheias; tinha inabaláveis certezas quanto ao futuro comunista da sociedade humana, mas não resistia a interrogar-se sobre as grandes etapas da marcha para esse futuro; entregou desde muito cedo a sua vida ao PCP, mas por isso mesmo tinha em relação a actividades deste uma permanente e salutar apreciação crítica e autocrítica; conservou até ao fim da vida uma lúcida independência de opinião, que é um valor revolucionário dos mais importantes.
Carlos Brito