Quando hoje por volta do meio-dia cheguei ao Casal da Formiga, após uma manhã a despachar a longa lista de compras que a Lurdes Rata reivindicou em tom de ultimato – “ou me arranja material em condições para lhe limpar o curral, ou nunca mais cá ponho os pés!”, notei um inusitado movimento de massas, um aglomerado de vizinhos agitando forquilhas, sachos e podoas, mesmo em frente ao meu portão de chapa zincada castanho-ferrugem.
Por via das dúvidas parei o Ford Capri a uns bons trinta metros do portão e avancei para a pequena multidão sem perceber exactamente o que se passava. “Querem ver que apanharam algum marmelo a fanar-me uma Barca Velha ou um par de alheiras de Mirandela?” – atirei eu a adivinhar. Mas à medida que me aproximava conseguia perceber a disposição hostil da comissão de boas-vindas. Sentia-se no ar um ambiente tenso e começava a cheirar-me a levantamento popular e a sovacos mal lavados.
Encabeçando o povo indignado, a vizinha Carmélia, uma solteirona roliça e de focinho vermelho rubi, que nunca me perdoou não a ter “assediado” numa ocasião em que apareceu lá em casa meio descascada a pedir “um raminho de salsa”, enquanto lânguida passava as mãos pelas mamas e me piscava o olho, dirigiu-se a mim de dedo em riste e tom irado – “o senhor vai ter de nos explicar como é que arranjou dinheiro para comprar um cão novo!” - roncou grosso e curto a líder do movimento. Meio atónito repliquei – “mas… o que é que se passa com o cão?”. A mulher não se fez rogada e continuou – “o senhor tem de explicar ao povo como é que tinha um rafeiro, o Piruetas ó lá que raio é que era, e agora tem um pastor alemão?”.
Como não estava a perceber nada do que se estava a passar, corrigi a mulher – “primeiros não era Pirueta, era Piruças e morreu debaixo dum pneu do Maloio, e segundos o que é que lhe interessa onde arranjei o meu Fidalgo?”
Visivelmente enervada, Carmélia lá continuou a inquirição em “nome do povo” – “e ainda por cima é Fidalgo, vistes!... Deve ter sido baratinho, deve!... O senhor já ouviu falar de “inriquecimento inlícito”, já? Como é que um pelintra como você que nem dá dinheiro à mulher a dias para comprar lixívia, comprou um cão destes que deve ter custado um dinheirão? Só de viagem da Alemanha para cá eu imagino quanto é que não ficou! A ver o que se paga daqui até ao cemitério de Casal Galego no Tumg, eu imagino da Alemanha para cá... upa, upa…”.
Atrás dela o povo parecia acentuar o que a mulher dizia acenado a cabeça de forma concordante e fuzilando-me com o olhar.
Já meio incomodado com o espectáculo a que me estavam a submeter, argumentei – “numa coisa tem razão, sou pelintra, pois se não fosse, já há muito tempo que me tinha mudado para o Pêro Neto, só para não ter de aturar gente desbocada e mal formada como vocês. Alguém tem alguma coisa a ver com que dinheiro é que comprei o cão? Enriquecimento ilícito, eu? Isso só se aplica às pessoas que exercem cargos políticos. Isso é lá mais uma daquelas trapalhadas só para inglês ver e para dar tudo em águas de bacalhau. Os nossos políticos são tão burros e têm tão pouca confiança uns nos outros que não percebem que a credibilidade e a integridade não se decreta, praticasse. Mas afinal o que é que vocês me querem? Querem inverter o ónus da prova?”.
Fez-se silêncio. O “ónus da prova” parecia ter sido disparado com uma bazuca, tal foram os efeitos devastadores sobre a moral dos manifestantes. Carmélia ainda tentou recompor-se e reagrupar as tropas – “você não é político mas pensa nisso todos os dias, ou julga que a gente não sabe que gostava de ser presidente da junta?”.
Assumindo o ar confiante de candidato a presidente da junta levantei o queixo e, colocando a voz declarei alto e bom som: “vêem ao que um homem de bem se tem de submeter só porque foi sério e não quis apalpar aqui a vizinha Carmélia? Vêem o que é que uma pequena velhaca pode fazer para pôr em causa o meu bom nome, só porque tem inveja de eu ter um cão novo?”. Senti que estavam a ser sensíveis aos meus argumentos, só faltava a estocada final. Virando-me de súbito em direcção ao quintal, juntei polegar e indicador e, levando-os à boca, assobiei com quanta força tinha. “Fidalgo, ataca!” - gritei a plenos pulmões. O cão respondeu pronto ao meu sinal e, saltando o muro de um pulo, correu em direcção aos revoltosos, procurando companheiros para a brincadeira. Num ápice todos os vizinhos desapareceram do meu campo visual, deixando no ar um cheiro a derrota e aos tais sovacos mal lavados.
Fidalgo, um pastor alemão com pedigree, brincalhão, divertido e fiel, que apenas se queria divertir, correu para mim de cauda a abanar. Baixei-me e afaguei-lhe a enorme cabeça lustrosa – “nada como um alemão para os pôr na ordem” – segredei-lhe ao ouvido. “Lindo menino!”
Este texto foi-me enviado via mail pelo relaxoterapeuta, autorizando-me a fazer dele o que quisesse. É evidente que é esta a melhor utilização que lhe posso dar. Partilhando-o com os meus leitores.Obrigado meu caro.