"A mãe de todas as mensagens
das manifestações do passado fim de semana foi a afirmação da vida contra a
morte. Uma afirmação com três nomes: dignidade, democracia e patriotismo. E uma
canção, onde coube todo o país exceto o governo. Sentindo um perigo e uma
ameaça viscerais, os portugueses recusam-se a deixar de gostar de si e do seu
país. Vivem um momento de intensa inteligência intuitiva que está além e aquém
do que os discursos e representações oficiais dizem deles. Recusam-se a aceitar
que uma vida honesta feita de muito trabalho e estudo possa ser apelidada de
preguiçosa, leviana e aventureira, que os impostos e os descontos pagos ao
longo da vida tenham sido em vão, que quem menos pagou seja quem é mais
protegido num momento de dificuldade coletiva. Recusam-se a aceitar que a
democracia seja uma máquina de triturar a esperança, um moinho que só sabe moer
o moleiro, uma farsa onde só são reais os fios que sustentam as marionetas, uma
engrenagem encalhada num parlamento à beira-mar enterrado. Recusam-se a aceitar
que os representantes eleitos pelo povo representem exclusivamente os
interesses de credores predadores, que os governantes tenham outra pátria que
não a dos governados, que a riqueza do país e o bem-estar dos cidadãos se
transformem em penhora de um futuro hipotecado, que o roubo deixe de o ser
apenas por estar institucionalizado e cotado internacionalmente. Recusam-se a
aceitar que um governo nacional se comporte como a comissão liquidatária do
país, reduza a história e a cultura a números, de que aliás retira tantas
previsões quantas imprevisões, viaje às escondidas pelo país e só fale em
público quando o público é estrangeiro.
Esta inteligência intuitiva, que afirma a dignidade, a democracia e o patriotismo, permite entender o que parece inexplicável: que o governo seja indigno, apesar de ocupar instituições dignas; antidemocrático, apesar de ter sido eleito democraticamente; e antipatriótico, apesar de se dizer nosso ante outros países. A inteligência intuitiva não dispensa razões nem desconhece riscos, mas tem com umas e outros uma relação indireta ou fractal. Tem assim uma leveza traiçoeira que torna o seu tratamento político complexo. Eis algumas das razões. Cerca de 20% da receita fiscal vai para pagar juros (por cada 100 euros, 20 vão para os credores); pagamos em juros mais do que gastamos com a educação (108%) e 86% do que gastamos com a saúde; os juros representam 15% da despesa efetiva total do Estado; a política de austeridade aniquila os devedores até ao ponto de nada mais lhes poder tirar senão a vida nua que ainda lhes restar; se propuséssemos uma renegociação da dívida e não pagássemos juros durante o período de negociação (moratória), o nosso orçamento estaria equilibrado e seria possível libertar recursos para investimento e criação de emprego.
Quais os riscos? Se a política atual se mantiver, os portugueses passarão os próximos trinta anos a transferir a sua poupança para o exterior; com o ritmo migratório de 40.000 pessoas por ano, na grande maioria jovens e muitos deles altamente qualificados, daqui a dez anos Portugal será um imenso deserto com balões Google de resorts para turistas. Mais do que riscos, estas são certezas. Contra elas, há que ponderar os riscos da moratória. Portugal ficará sem acesso aos mercados? Mas não é esta a situação atual? O que aconteceu com a Islândia? Os credores, confrontados com uma ameaça credível de moratória, serão rígidos ou negociarão receber alguma coisa em vez de nada? A UE deixará cair definitivamente a periferia, como tem vindo a fazer, ou entenderá finalmente que a crise do sul da Europa só é grave porque há um norte que se alimenta dela e dispõe de uma moeda apenas coerente com a sua economia? Ante riscos de desastre e certezas desastrosas, a inteligência intuitiva não hesita.
O hino à vida que se ouviu pelo país inteiro foi uma moção popular pela demissão do governo. Parafraseando o que Humberto Delgado disse sobre o que faria de Salazar se ganhasse as eleições: obviamente, demitam-se!"
Esta inteligência intuitiva, que afirma a dignidade, a democracia e o patriotismo, permite entender o que parece inexplicável: que o governo seja indigno, apesar de ocupar instituições dignas; antidemocrático, apesar de ter sido eleito democraticamente; e antipatriótico, apesar de se dizer nosso ante outros países. A inteligência intuitiva não dispensa razões nem desconhece riscos, mas tem com umas e outros uma relação indireta ou fractal. Tem assim uma leveza traiçoeira que torna o seu tratamento político complexo. Eis algumas das razões. Cerca de 20% da receita fiscal vai para pagar juros (por cada 100 euros, 20 vão para os credores); pagamos em juros mais do que gastamos com a educação (108%) e 86% do que gastamos com a saúde; os juros representam 15% da despesa efetiva total do Estado; a política de austeridade aniquila os devedores até ao ponto de nada mais lhes poder tirar senão a vida nua que ainda lhes restar; se propuséssemos uma renegociação da dívida e não pagássemos juros durante o período de negociação (moratória), o nosso orçamento estaria equilibrado e seria possível libertar recursos para investimento e criação de emprego.
Quais os riscos? Se a política atual se mantiver, os portugueses passarão os próximos trinta anos a transferir a sua poupança para o exterior; com o ritmo migratório de 40.000 pessoas por ano, na grande maioria jovens e muitos deles altamente qualificados, daqui a dez anos Portugal será um imenso deserto com balões Google de resorts para turistas. Mais do que riscos, estas são certezas. Contra elas, há que ponderar os riscos da moratória. Portugal ficará sem acesso aos mercados? Mas não é esta a situação atual? O que aconteceu com a Islândia? Os credores, confrontados com uma ameaça credível de moratória, serão rígidos ou negociarão receber alguma coisa em vez de nada? A UE deixará cair definitivamente a periferia, como tem vindo a fazer, ou entenderá finalmente que a crise do sul da Europa só é grave porque há um norte que se alimenta dela e dispõe de uma moeda apenas coerente com a sua economia? Ante riscos de desastre e certezas desastrosas, a inteligência intuitiva não hesita.
O hino à vida que se ouviu pelo país inteiro foi uma moção popular pela demissão do governo. Parafraseando o que Humberto Delgado disse sobre o que faria de Salazar se ganhasse as eleições: obviamente, demitam-se!"
Boaventura de Sousa Santos
Crónica | Visão 7 Março 2013
4 comentários:
Gosto muito deste sociólogo!
É brilhante e então ouvi-lo pessoalmente?!
Abraço
*
Amigo,
,
uma boa escolha,
,
Boa(s)ventura(s, muitas,
deixo-te,
*
Boaventura é boa criatura
mas não me alegra muito...
é que ele fica-se pela reclamação da reestruturação da dívida (depois de salientar - e bem - o desastre de se continuar este caminho) mas falta-lhe o essencial: qual o modelo económico a prosseguir para se garantir crescimento e a redução das desigualdades? No mínimo, BSS, devia exigir que a discussão se fizesse, que se abrisse amplo debate sobre a economia...
É que se o Estado mantiver nas mãos do capital os instrumentos que garantem o desenvovimento, caimos na mesma, passado algum tempo...
Tirando o resto é simpático o discurso do gajo.
Semelhante ao que disse o Sampaio quando era Presidente.
Ouvi hoje que cerca de meio milhão de crianças em Portugal em risco de subnutrição.
Não pode ser verdade, é demasiado cruel para ser verdade!
Aquele abraço e votos de bfds, Rodrigo!
Enviar um comentário